Os riscos penais pelo não pagamento dos tributos em tempos de pandemia

Há praticamente três décadas a Lei 8.137/90 remodelava os crimes tributários. De lá para cá, o texto original sofreu algumas poucas alterações em sua redação, mantendo-se inalterado o seu efeito intimidativo: por meio da imputação de crime, a lei busca desestimular a prática da sonegação fiscal.
Tanto assim o é, que o Poder Judiciário constantemente é chamado a decidir questões que versam sobre o não pagamento de tributos como uma forma enviesada de garantir que o imposto seja pago, uma vez que o adimplemento da obrigação tributária encerra a discussão, e evita a imposição de pena. Em passos largos nesse sentido, no final de 2019, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, no julgamento do RHC 163.334/SC da relatoria do Ministro Roberto Barroso[1], decidiu que o não pagamento do ICMS declarado tipificaria crime contra a ordem tributária.
Assim, nossa corte máxima fixou uma nova tese sob a qual “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990″.
Importante lembrar que até meados de 2018[2], o posicionamento majoritário que vigorava nos tribunais superiores era o de que o tributo declarado e não pago não configuraria crime, mas mero inadimplemento fiscal, ou seja, na hipótese de o contribuinte confessar ao fisco a existência de um débito, e não realizar o pagamento do tributo devido não haveria interferência do direito penal.
A questão, em si mesma bastante complexa, se mostra ainda mais intrincada em tempos de pandemia, pois, a nosso ver, em um breve futuro a ordem jurídica enfrentará um duro choque de interesses, de um lado, o Estado buscando arrecadar recursos para sair da crise econômica e suprir os gastos extraordinários que se fizeram obrigatórios em razão da Covid-19 e, do outro, os empresários, cujas atividades foram drasticamente afetadas pela quarentena, e em razão da mesma crise, foram levados a flexibilizar o cumprimento das obrigações tributárias.
De tal modo, a calamidade pública instalada no país encaminhará à apreciação do Poder Judiciário casos concretos com as mais diversificadas modulações, algumas das quais já se fazem previsíveis neste momento. A mais óbvia delas é a do empresário, que para manter em funcionamento sua empresa deixará de pagar os tributos devidos.
Trata-se daquela situação na qual os poucos recursos disponíveis no caixa são destinados à folha salarial, ou à quitação das obrigações essenciais para a manutenção do negócio (compra de insumos, custos de energia, aluguéis, pagamento de financiamentos, etc.), ao invés do pagamento dos impostos. Ocorre que, como dito anteriormente, nos termos do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, o contribuinte, que de maneira contumaz, deixar de recolher os tributos regularmente apurados estará incorrendo em crime fiscal – ainda que não tenha praticado qualquer fraude relacionada ao não-pagamento.
Contudo, aplicar pura e simplesmente tal entendimento em meio à crise instalada no país, além de uma demonstração de absoluta insensibilidade jurídica, contrariaria posicionamentos anteriores dos tribunais, que diante de situações extraordinárias, de calamidade pública, para evitar o excesso punitivo, acataram soluções oferecidas pelo direito penal. Isto porque, não se trata propriamente de uma novidade para a justiça penal a possiblidade de se excluir a responsabilidade do autor do crime, nos casos em que diante de um conflito de deveres igualmente relevantes, não seja a ele possível atuar de outro modo.
A essa causa de exclusão de culpabilidade se dá o nome de inexigibilidade de conduta diversa (ou estado de necessidade exculpante), cujo efeito é afastar a incidência do crime, ainda que a conduta praticada pelo agente seja típica e antijurídica. De forma mais concreta, trata-se de uma causa justificante capaz de excluir o crime da conduta do empresário, que ultrapassa os limites legais, como forma de assegurar a sobrevivência da empresa.
Registre-se, que a simples alegação quanto à impossibilidade de agir diferente diante da calamidade pública causada pela pandemia, não terá por si só o condão de dissipar os malefícios de uma condenação criminal. Uma breve visita à jurisprudência nos permite identificar que os Tribunais[3] possuem critérios rígidos para a demonstração da crise financeira, sendo certo que a comprovação da causa justificante cabe inteiramente à defesa. De tal modo, deve ser feita uma demonstração concreta e palatável de que as dificuldades enfrentadas pela sociedade empresarial compunham um quadro excepcional, imprevisível e invencível, impeditivo de que o agente atuasse conforme o ordenamento jurídico[4].
Mas não é só. Outro importante critério observado pelos Tribunais ao longo dos anos, na apreciação da excludente de culpabilidade, trata-se da impossibilidade da conduta criminosa, a que se pretende ver afastada da responsabilidade penal, ter sido praticada por meio de fraude. Na visão dos tribunais o conflito de deveres é incompatível com a utilização de meios fraudulentos para o não pagamento dos tributos. Por exemplo, ao optar pelo pagamento dos salários dos funcionários e não dos impostos neles incidentes, o contribuinte ao invés do simples não-pagamento, utiliza-se de um expediente fraudulento, falsificando documentos.
Não há dúvida, portanto, que na esfera dos crimes de apropriação indébita previdenciária (art. 337-A do CP), ou tributária – como quer o Supremo Tribunal Federal também nas hipóteses de não-pagamento de ICMS (art. 2o, inciso II da Lei 8.137/90) [5], uma vez que o elemento fraude não faz parte destes tipos penais, não vislumbramos grandes questionamentos. Vale dizer, uma vez que seja comprovada a tese de excludente de culpabilidade, aguarda-se que a jurisprudência siga o entendimento já consolidado, restando afastada a responsabilidade penal.
Outras são, entretanto, as perspectivas se presente um elemento de maior reprovabilidade da conduta – a fraude. Nesses casos, devemos considerar que há na jurisprudência uma maior resistência no reconhecimento da excludente de culpabilidade. De todo modo, é preciso não perder a perspectiva de que embora exista um tímido número de julgados admitindo o reconhecimento da tese exculpante de culpabilidade nos casos do art. 1o da Lei 8.137/90, também se faz viável a alegação, em especial em situações nas quais não pairam dúvidas sobre a difícil situação financeira enfrentada à época dos fatos.
Cumpre por fim observar, que as mazelas decorrentes dos procedimentos penais advirão mesmo nos casos concretos nos quais for obtida uma solução positiva para os contribuintes. Isto porque, a tese da inexigibilidade de conduta diversa não impedirá a instauração de investigações policiais, tampouco, o curso de processos penais, já que é prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário afastar a responsabilidade penal, especialmente em se tratando de excludentes.
Note-se, que no momento atual, no qual as empresas enfrentam ao mesmo tempo uma redução drástica nas receitas e a manutenção das despesas ordinárias, muitas decisões difíceis deverão ser tomadas, e por vezes será preciso assumir riscos. Se assim o for, que os riscos assumidos em nome da sobrevivência da empresa sejam mitigados pelo registro minucioso de cada uma das etapas de decisão, as quais no futuro poderão ser uma importante fonte de prova.
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[1] O Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Plenário 18.12.2019.
[2] Em agosto de 2018, por seis votos a três, os ministros da 3ª Seção do STJ negaram Habeas Corpus de empresários que não pagaram valores declarados de ICMS, depois de repassá-los aos clientes. Ao seguirem o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a prática foi considerada apropriação indébita tributária. Até então, havia divergência entre as turmas da corte, enquanto os ministros da 5ª Turma consideravam o ato criminoso, os da 6ª Turma decidiam em sentido contrário.
Em dezembro de 2019, o caso foi reanalisado em grau de recurso pelo STF, e no julgamento do RHC 163.334/SC foi confirmado o entendimento de que se tratava de hipótese criminosa o não-pagamento do tributo.
[3]TRF1, Ap. Crim. 0030741-32.2012.4.01.3300/ACR; j. em 20.11.19.
TRF2, Ap. Crim. 0009154-62.2012.4.02.5001/RJ; j. em 11.06.19.
TRF3, Ap. Crim. 0010571-19.2005.4.03.6181/SP; j. em 06.06.18.
TRF4, Ap. Crim. 5016818-55.2013.4.04.7107/SR; j. em 14.12.16.
TRF5, Ap. Crim. 0002761-84.2014.4.05.8100/CE; j. em 04.09.18.
[4] Alguns julgados contem ainda a exigência de que se faça a demonstração de que o patrimônio pessoal dos sócios foi utilizado no enfrentamento das dificuldades financeiras da sociedade empresarial para o reconhecimento da causa excludente da culpabilidade (Nesse sentido v. TRF2, Ap. Crim. 0009154-62.2012.4.02.5001/RJ; j. em 11.05.19).
[5] Cabe aqui a ressalva de que engrossamos as fileiras dos que discordam do posicionamento atual adotado pelo Supremo Tribunal Federal com relação a criminalização do inadimplemento do ICMS. Se o contribuinte escritura, em sua contabilidade, os valores a serem pagos ao fisco, e não realiza o pagamento, resta ausente o dolo de apropriar-se de coisa alheia móvel de que se tem a posse ou detenção, ou seja, se estiver ausente o especial fim de agir, vale dizer, a intenção de tomar para si o dinheiro pertencente ao fisco, não há crime, apenas inadimplemento de dívida. Qualquer outro entendimento, a despeito da posição punitivista adotada pela Corte Suprema, transforma o direito penal em instrumento de cobrança, afronta o princípio de proibição de prisão por dívida, sendo de tal modo inconstitucional.
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